sábado, 27 de abril de 2013

Sob o olhar de Amanda Calabria

De alma pra alma: entre janelas e portais


Todas as terças e quintas, quando chego no Solar eu tenho um encontro comigo mesma. São os meus dias na semana, que são meus, pra mim, para eu fazer o que mais gosto que é trocar sinestesicamente com as pessoas e as coisas, com seus cheiros sons e texturas, que parecem até de um outro universo que não do meu dia-a-dia conturbado citadino. A arte está no encontro com as paredes, com as janelas arejadas, com o teto abobadado e suntuoso, com o piso metrificado e com os olhos sorridentes e afetuosos que me tragam, me levando para esse universo encantador e encontrador que é a arte. O dia-a-dia conturbado se esvai, silenciando minhas questões e imprimindo à minha cabeça um raciocínio sagaz e audacioso para as pessoas, para os olhos, para respiração e a alma. Matéria e alma. A alma. Acho que foi isso com que eu me deparei nessa última quinta-feira.

Tudo começou com um alongamento doloroso despertando o corpo. Por motivo de saúde, o Professor Mendonça não pode estar conosco e a Renata foi a “Nossa”. Passamos para um alongamento em dupla, que se aparentemente não havia nada demais, para mim foi uma grande troca. Tocar, massagear, alongar, entender o corpo da colega. Olhar a Nathália nos olhos, sentir sua respiração. Fazer todas as coisas que fomos desaprendidos a fazer ao longo da vida. A partir daí, nos movimentamos com o par no jogo do peso e contrapeso. Sentindo o peso do braço, do tronco, das pernas, se envolvendo num movimento aonde dois corpos são um só.

Trabalhamos também em algumas brincadeiras, como rolar sobre os corpos dos colegas e manejar o corpo do amigo com os olhos fechados, em roda, semelhante ao “João-bobo”. Se aparentemente parecia não se passar de uma brincadeira, quem experienciava se debruçava sobre uma relação estreita de confiança, de doação, de cuidado, de percepção do outro. É como se ver no espelho em outra matéria e entender os movimentos corporais. Já havia feito esse exercício um zilhão de vezes, é corriqueiro nas aulas de teatro porque tem essa função importante mesmo de trabalhar a relação com o outro. Mas achei muito boa a forma como a aula foi conduzida, como cada exercício foi importante para a realização do próximo, que viria ainda mais íntimo.

O ápice da aula, para mim, esteve nos dois exercícios que vieram depois. Intensos, invasores, íntimos e coletivos. O primeiro, que começou com uma despretenciosa caminhada pelo espaço com troca de olhares, desencadeou num jogo de afetos interessantíssimo em duplas. Após uma breve e deliciosa troca, com o Jefferson, me ative aos olhos curiosíssimos do Jessé. Que experiência! Doação: um jogo gostoso de se realizar, invasor, investigativo que me afetou de diferentes modos. Os movimentos eram inesgotáveis e as sensações múltiplas; os olhos se adentraram um no outro. Sinto que poderia ter namorado com os olhos do colega por tempo indeterminado que os movimentos fluiriam.

Foto de Augusto Fontes Júnior:
Alex Kossak e Marilia Petrechen, atores e amigos do projeto.

O último exercício foi ainda mais íntimo. Em roda, cada um passaria pelos colegas olhando-os nos olhos. Eu não sinto mais incômodo em fazê-lo, sinto até carência quando não o faço. Uma das coisas mais bonitas com que o teatro me presenteou foi me mostrar que eu poderia olhar nos olhos das pessoas. E o melhor: que poderia descobrir coisas sobre ela e sobre mim. Como eu gosto dessa brincadeira! Eu vou fundo. Gosto de pensar que as pessoas podem descobrir coisas sobre mim sem que eu precise dizê-las. Então eu me dôo mesmo, me deixo exposta. Naquele instante amei a todos. E, por segundos, morei em cada um dos pares de olhos. Claro, escuro, grande, pequeno, arguto, cego, doce, profundo. Cada olhar era diferente, cada olhar trazia uma história. E assim como a Camila eu também senti saudade dos olhares. A brincadeira perpassava a matéria. A gente se via, e via no outro a alma. Afeto é a palavra para descrever coisas que passaram pelo meu corpo. Fui afetada por sentimentos como carinho, curiosidade, desejo, tesão, compreensão... Marília disse que todos ficaram lindos. E foi mesmo. As almas são mesmo lindas. Belas e transparentes. Os olhares têm chegadas e despedidas. Encontros e desencontros. Os olhos: portais. Janelas da alma.

Amanda Calabria


Um comentário:

  1. Amanda Calabria é uma atriz de grande sensibilidade. Tenho certeza de que , inserida em um projeto tão instigante quanto esse, está encontrando um espaço precioso de interação entre intuição e técnica. O projeto já é um espetáculo. Abraço carinhoso em todos aí.
    Mirian Calabria

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